Tuesday, June 15, 2010

A formação do Espaço Interior

Fui à livraria ontem, na hora do almoço, para aliviar o dia. Rondo o local, não sei para onde vou. Acabei na seção de revistas culturais, de escritores, etc. O que estou procurando? Não sei. Vou saber quando encontrar. Bato o olho em dezenas de artigos e rejeito tudo. Pouca coisa me parece interessante. Folheio mais. Rejeito volumes inteiros, só pela capa: na maioria das vezes, porque é colorida demais, frívola demais, e sei que o interior será o mesmo. Julgo, sim, pela capa: não quero perder tempo, estou na hora do almoço. Encontro uma mais sóbria, mais séria: “American Scholar”. Gosto do título. Folheio e leio, só algumas frases de cada artigo: já dá pra sentir se vai ser bom ou ruim. Descarto, vou pulando, até encontrar o que estava procurando sem saber: “Reading in a Digital Age”, de Sven Birkerts.

Que porrada. Após a primeira leitura, já começam as mudanças. A primeira coisa diferente que fiz -- embora o artigo não tenha sugerido isso -- foi não ouvir nada, no carro, durante o trajeto de volta para casa, que demora uma meia hora. Normalmente, escuto alguma gravação -- aula de filosofia, ou de qualquer outro curso que esteja fazendo naquele momento (crítica literária, as “grandes idéias”, grego clássico, linguística, etc.). Mas decido criar um “espaço interior” e fico ali calado, dirigindo para casa, ouvindo o que passa pela minha cabeça. Essa foi a primeira reação, espontânea.

Sinto que tenho que reagir ao texto, que é um desafio que o autor está colocando diante de mim. Claro que ele só estava descrevendo uma experiência vivida por ele, de espanto com seus alunos, que não conseguiam ler um texto de Henry James, por ser longo demais, por requerer atenção e concentração nesses dias de internet, onde tudo é instantâneo e breve. Pulamos de um link para outro como de galho em galho, para agarrar o nada.

O que significa isso para as nossas mentes, ele se pergunta, e vem a assombração, o horror: há uma mudança de paradigma, um movimento das placas tectônicas parecido com o que aconteceu quando da invenção do relógio. As mentes começam a funcionar de outra maneira, pensar de outra forma, e o próprio ato de ler não é mais o mesmo: metamorfou-se num monstrenguinho irritante e frívolo, um mosquito que pousa momentaneamente no texto, dá uma sugada-relâmpago, e segue seu vôozinho frenético.

É assustador. É assustador porque vejo que acontece comigo também, embora Sven esteja falando de gente 20 anos mais jovem do que eu. O que fazer? Criar o meu espaço interior. Parar de navegar tanto na internet. Gostei de ter encontrado o artigo dele não na internet, mas na livraria. Gostei porque comecei, ali mesmo, ou talvez pouco depois, a perceber que naquele ato físico de adentrar a livraria havia um reflexo dos movimentos profundos da minha mente. Digamos que tornei consciente meu inconsciente. Mas ao folhear as revistas estava folheando também memórias e impressões, remexendo essas profundezas do meu ser, e sentia que estava tentando conectar-me com algo real existente dentro de mim. As revistas que rejeitava não ressoavam internamente, mas quando li apenas algumas palavras daquele artigo pressenti imediatamente o elo formado entre o texto e minha realidade interior.

Tava antenado, morô. Ou coisa parecida. O importante é que percebi, tive noção desses movimentos profundos e soube relacioná-los às imediações superficiais. Isso é bom -- normalmente me passa despercebido.

Não tenho vontade de recapitular a leitura, nem um pouco. Quem quiser ler, vá atrás. Não vou colocar link. Não é para linkar porra nenhuma. É para ler sobre essa minha experiência e aprofundar-se na sua. Não dá para notar como seria irônico eu colocar um link, nesse momento, quando estou falando exatamente da necessidade de parar um pouco, de não sair esbaforido por aí lendo tudo que tiver um hiperlink? Não é pra estar conectado a toda hora, não. É necessário parar. Fui o que fiz. Comecei a criar um espaço interior.

Quando voltei para casa senti a necessidade de voltar ao Livro do Desassossego, meu companheiro de tantas horas, aquele que leu e lê a minha alma. Não pergunto mais por quê -- vou atrás do impulso. Não tento narrar para mim mesmo a razão desse querer, pois sei que alguma há e que qualquer explicação que contar para mim mesmo será apenas o verniz, o adorno da realidade subjacente.

Hoje tenho mais confiança nesses meus impulsos e menos necessidade de análise. Sei que a análise será superficial, um ponto ínfimo incapaz de abarcar o todo que senti. Deixo estar. Aqui, agora, deixo a palavra que brota dentro de mim aflorar, deixo as frases se encalacrarem por si mesmas e me largo a elas: que venham.

Sempre tive pudor, demasiado pudor ao escrever. Nunca me soltei. Sempre senti essa camisa de força ante o vazio da página, como se o espaço branco me envolvesse numa segunda pele, apertada, esticada sobre meu corpo inerte. Sei que acontece agora mesmo, enquanto escrevo, em grande medida. Digo a mim mesmo que isso não me acontece mais, mas é um jogo patológico, um “wishful thinking” destinado a libertar-me, quando o mais certo seria propor-me o contrário: estreitar mais ainda as opções, elevar o pudor ao extremo para sufocar-me ainda mais, no intuito de criar uma tensão insuportável calculada a desenbocar numa explosão libertadora.

Enfim, o texto me abalou muito, não porque não sabia da realidade ali exposta --já que a sentia dentro de mim, ele estava também falando de mim--mas porque fiz umas conexões com as aulas do prof. Olavo, que já estavam fermentando e que só precisavam de um catalisador para forçar o momento à sua crise inevitável.

Como fica a minha vida, doravante? Um filósofo não só lê -- ele internaliza a leitura e é por ela transformado. Às vezes acontece de roldão; mas normalmente é aos poucos. Fico achando que de repente vai haver um “clic” e tudo será diferente. Pode até ser, mas dura pouco. Em breve, estarei de volta ao estado anterior de indiferença ao espaço interior. Não basta “querer”. Quero um bando de coisa, mas nunca vou atrás, não com afinco, não como se a minha vida dependesse disso. E depende.

Estou falando aqui de algo muito sério. Todo meu futuro depende disso: a criação desse espaço interior, a partir do qual toda a pauta da minha vida será determinada. E é ainda mais do que isso; não se trata só do que vou fazer, mas de como vou ser. A palavra é “como”, mesmo. É o “como” que desvenda a atitude interior.

Fico aflito. A busca desse espaço interior torna-se premente.

Noto que leio demais. Estou sempre lendo e nunca digerindo. A internet nos leva a isso. Chega de comprar livros. O problema é que um livro puxa outro. “Vou fazer só uma pesquisa disso aqui”, digo a mim mesmo, e lá vou eu ladeira abaixo, deslizando na enxurrada de bosta online.

É uma doença, a internet -- é um saco de batata frita que não dá para parar de comer. Entupo-me disso diariamente, e meu espaço interior é sugado para fora de mim. Entro no vórtice e não saio, e às vezes parece que nunca vou conseguir sair.

Elaboro esse pequeno texto -- não sabia exatamente onde queria chegar. Isso é bom. Vou escrevendo e descobrindo.

Noto que é uma questão de vida ou morte: da minha própria mente, da minha consciência e subconsciência. Tudo vira pastoso, uma pasta indiscernível, chapada e acachapante. E me lambuzo nela, faço isso a mim mesmo -- por covardia e preguiça. Por pura incapacidade mental, falta de força de vontade, cegueira. Sei que é veneno -- mas tomo mesmo assim.

Olho para trás e vejo um grande vazio, um frenesi alucinante: é assim que minha vida tem transcorrido. Em meio aos iPhones e às infinitas conexões. Tudo se conecta a tudo, e lá vou eu seguindo o pontilhado. Olho à minha volta e noto que estou no mesmo lugar. Há décadas que estou sempre voltando ao mesmo lugar. Já senti o cheiro disso daqui -- não adianta nada encobri-lo com um pacote brilhante e novo.

Transformação -- se não há transformação, é tudo em vão. A transformação levará a outro lugar, não esse. Ou talvez a esse mesmo lugar, desde que com outros olhos, uma nova atitude.

Estamos sendo arrastados -- não, estamos em cima da falha continental e a placa tectônica inicia seu movimento. Todos estão em cima dela e seu movimento é imperceptível: se todos estão mexendo ao mesmo tempo, no mesmo ritmo, na mesma direção, junto com você, a impressão é de imobilidade, estabilidade. Não me conformo com essa nova concepção da mente. Podem ir sem mim: vou criar meu espaço interior, meu próprio continente, de onde observarei essa mudança épica sem me imiscuir nela.

Não vou a outro lugar: finquei-me aqui, enquanto todos se movem. E a cada dia que passa sinto a distância aumentar entre meu eu e os eus alheios. Lá vai o continente à deriva, sem mim. Adeus.

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